As correntes do portão se batiam exprimindo um som único. Eram as mãos ávidas e um tanto desesperadas de dona Filó, ao destrancar o cadeado, quando chegava pela manhã. Vinha sempre com alguma sacola e muita coisa para contar. Sua voz era fina e podia facilmente ser confundida com a de uma criança.
- Tudo bem por aqui? – Dizia acentuando o “i” enquanto espantava os cachorros para que, na fúria de suas alegrias, não a derrubassem ao chão.
Entrava, cumprimentava a papagaia, que ficava na entrada da casa, e sentava-se à mesa. Oferecia-lhe um café que, para ela, estava sempre gostoso. “Um dos melhores”, dizia. Enquanto ela bebia, eu preparava a tinta para pintar-lhe os cabelos.
Mesmo sem ter muito para onde ir, ela gostava de estar sempre arrumada. Uma vez por semana fazia as unhas dos pés e das mãos e estava sempre com os cabelos tingidos, e as orelhas nunca estavam peladas, brincos não faltavam. Se embonecava nem que fosse apenas para assistir à novela das seis. Aliás, narrava os desafetos e dissabores da mocinha, com tom melancólico e, às vezes, até dramático, como se as tristezas que afligiam a personagem também fossem as suas.
Rolando o saleiro na mão, ela contava um "causo" e, enquanto meu pensamento andava a passos largos, sua voz se esvaia lentamente, como um pássaro que cantando, bate as asas e segue o seu rumo.
Eu sabia poucas coisas sobre ela, entretanto, ouvira falar que não foram facéis as sete décadas que carregava nas costas curvas.
Um dia vi minha mãe aconselhando-a a aprender a ler, pois apenas seu marido era alfabetizado, fato que a deixava muito dependente dele. Entretanto, para ela, isso não era nenhum problema. Casada há quarenta anos, sempre que tinha oportunidade, dizia que a mulher devia, antes de tudo, respeito e obediência ao marido. Era o que viveu sua mãe e, também, a sua avó; bem como boa parte das mulheres da cidade em que nasceu, em Roraima.
Religiosamente, tratava de desenrolar seus afazeres a luz do dia, “Fico tonta se ando à noite”. Sempre desconfiei de que o breu da noite lhe abrisse uma janela de mistérios, e ela era uma mulher sem talvez. Era preto ou branco, certo ou errado, diga sim ou diga não; sem grandes divagações.
Aos parentes, vizinhos e conhecidos receitava de cabeça remédios caseiros. Assim, como cada panela tem a sua tampa, para cada doença havia uma planta. Arruda, guiné, alecrim, mastruz, boldo... Quem não acreditasse azar do sujeito, ela raramente ficava doente.
Ao fazer alguma comida especial, sempre trazia um pouco para mim. Quando voltava de viagem, um presentinho. Aplicando seus dotes como costureira, trouxe-me um dia um lençol feito por ela, o tecido era lilás e salpicado por centenas de pequenos coelhinhos brancos...
Com a tinta pronta, comecei a tirar-lhe o grisalho dos cabelos, depois os secaria. Após tudo, ao se olhar diante do espelho, do rosto enrugado de Filó um sorriso nasceu cheio de viço, como as crianças que deixam o ventre das mães para chegar ao mundo.
Pelas retinas, um tanto cansadas, vi que os cuidados que dedicava a ela, eram intermediários. Não importava o tom ou a textura dos cabelos. O crucial para ela era receber, nem que fosse por poucos momentos, algum afeto e atenção, que eram retribuídos com seus beijos e abraços a mim doados.
Tempo depois eu a vi, era verão e fazia frio. As árvores farfalhavam e faziam um arco sobre a ruazinha estreita que me levaria a ela. Enquanto todos estavam vestidos, ela estava desagasalhada, com uma blusa rosa de tecido fino. Envolta em flores murchas, os cabelos tinham um tom lúgubre de cinza, como o céu daquela tarde.
Surgiram-me tantas perguntas que queria ter feito a ela, que outrora vieram, mas que de maneira tão pueril eu as ignorei. Tantas coisas queria saber daquela mulher cujos olhos eram doces como frutas tiradas do pé...
Todo caso, de nada serve o fado do arrependimento. Não há mais perguntas, nem respostas, apenas o abraço frio do vazio.
- Tudo bem por aqui? – Dizia acentuando o “i” enquanto espantava os cachorros para que, na fúria de suas alegrias, não a derrubassem ao chão.
Entrava, cumprimentava a papagaia, que ficava na entrada da casa, e sentava-se à mesa. Oferecia-lhe um café que, para ela, estava sempre gostoso. “Um dos melhores”, dizia. Enquanto ela bebia, eu preparava a tinta para pintar-lhe os cabelos.
Mesmo sem ter muito para onde ir, ela gostava de estar sempre arrumada. Uma vez por semana fazia as unhas dos pés e das mãos e estava sempre com os cabelos tingidos, e as orelhas nunca estavam peladas, brincos não faltavam. Se embonecava nem que fosse apenas para assistir à novela das seis. Aliás, narrava os desafetos e dissabores da mocinha, com tom melancólico e, às vezes, até dramático, como se as tristezas que afligiam a personagem também fossem as suas.
Rolando o saleiro na mão, ela contava um "causo" e, enquanto meu pensamento andava a passos largos, sua voz se esvaia lentamente, como um pássaro que cantando, bate as asas e segue o seu rumo.
Eu sabia poucas coisas sobre ela, entretanto, ouvira falar que não foram facéis as sete décadas que carregava nas costas curvas.
Um dia vi minha mãe aconselhando-a a aprender a ler, pois apenas seu marido era alfabetizado, fato que a deixava muito dependente dele. Entretanto, para ela, isso não era nenhum problema. Casada há quarenta anos, sempre que tinha oportunidade, dizia que a mulher devia, antes de tudo, respeito e obediência ao marido. Era o que viveu sua mãe e, também, a sua avó; bem como boa parte das mulheres da cidade em que nasceu, em Roraima.
Religiosamente, tratava de desenrolar seus afazeres a luz do dia, “Fico tonta se ando à noite”. Sempre desconfiei de que o breu da noite lhe abrisse uma janela de mistérios, e ela era uma mulher sem talvez. Era preto ou branco, certo ou errado, diga sim ou diga não; sem grandes divagações.
Aos parentes, vizinhos e conhecidos receitava de cabeça remédios caseiros. Assim, como cada panela tem a sua tampa, para cada doença havia uma planta. Arruda, guiné, alecrim, mastruz, boldo... Quem não acreditasse azar do sujeito, ela raramente ficava doente.
Ao fazer alguma comida especial, sempre trazia um pouco para mim. Quando voltava de viagem, um presentinho. Aplicando seus dotes como costureira, trouxe-me um dia um lençol feito por ela, o tecido era lilás e salpicado por centenas de pequenos coelhinhos brancos...
Com a tinta pronta, comecei a tirar-lhe o grisalho dos cabelos, depois os secaria. Após tudo, ao se olhar diante do espelho, do rosto enrugado de Filó um sorriso nasceu cheio de viço, como as crianças que deixam o ventre das mães para chegar ao mundo.
Pelas retinas, um tanto cansadas, vi que os cuidados que dedicava a ela, eram intermediários. Não importava o tom ou a textura dos cabelos. O crucial para ela era receber, nem que fosse por poucos momentos, algum afeto e atenção, que eram retribuídos com seus beijos e abraços a mim doados.
Tempo depois eu a vi, era verão e fazia frio. As árvores farfalhavam e faziam um arco sobre a ruazinha estreita que me levaria a ela. Enquanto todos estavam vestidos, ela estava desagasalhada, com uma blusa rosa de tecido fino. Envolta em flores murchas, os cabelos tinham um tom lúgubre de cinza, como o céu daquela tarde.
Surgiram-me tantas perguntas que queria ter feito a ela, que outrora vieram, mas que de maneira tão pueril eu as ignorei. Tantas coisas queria saber daquela mulher cujos olhos eram doces como frutas tiradas do pé...
Todo caso, de nada serve o fado do arrependimento. Não há mais perguntas, nem respostas, apenas o abraço frio do vazio.