quarta-feira, 28 de novembro de 2012

O ar que não condiciona

O ar não condiciona nossos corpos. Gotejamos descontroladamente. Meu corpo minando, gente suando em suas roupas e gente suando em mim. Não há nojo ou repulsa, somos um caldo só. Eu sou o pedreiro, a dona de casa, o estudante e a aposentada. Como massa sou isso e, também, sou nada disso. Ao sair do vagão me desgrudo da gosma e me integro a mim. Daqui a algumas horas me integro a eles, me integro a mim, novamente.
  

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Tristeza a beira mar

O menino olha o mar
seduzido que transborda.
A mãe:
- Não! É perigoso!
A raiva pequena germina.
Chutinhos na areia...

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

Reunião de família


Que são esses laços de sangue de que tanto falam?
Laços são gentis. Essas cordas vermelhas e invisíveis que nos amarram sem nos prender...
Que condição é essa em que nos colocam sem que possamos escolher, resolver e entender?
Em que ser não desenha nenhuma existência. Em que ser, muitas vezes, é uma máscara pintada ao momento, em que um sorriso não expressa nenhum contentamento.
Mas ainda que eu saia, não saí. Ainda que eu fique, não fiquei. Sou imigrante de mim.
Talvez os laços de sangue sejam essas correntes aveludadas que adornam meus tornozelos. Em que prendo e desprendo a vida todo dia...  

sábado, 25 de agosto de 2012

O começo do fim

Larguei de mão a mulher que cheia de buracos fumegantes tenta tapá-los com comida. 
Apenas mastigo. 

domingo, 22 de julho de 2012

Descaminho

Estou com os lábios pintados
e a roupa mais bonita,
mas soube que você não vem

Com os olhos acesos
e os quadris cintilantes,
mas soube que você não vem

Com o coração cheio
e os poros minando desejo,
mas soube que você não vem

Com fome da vida
e pronta pra molhar a sua sede,
mesmo assim você não vem

Pendo num penhasco
agarrada a um fio de cabelo,
mas até a esperança desesperançou

Seus pés enveredaram
por outros caminhos
e hoje você não vem



terça-feira, 3 de julho de 2012

Dança da cadeira

Sou um corpo sentado numa cadeira que pertence a um agrupamento uniforme de outras cadeiras. Todas vazias. Um café me faz companhia, mas logo segue o seu destino. As pessoas passam e me passam os olhos, com suas caras moles lamentando a minha solidão que também é delas. Eu observo o mundo de fora e sei que ainda assim ele me devora. Sem fome, como qualquer coisa pra preencher um vazio. Troco de calçada e me junto a outras cadeiras. Os olhares não mudaram. Nem eu mudei de lugar.

terça-feira, 12 de junho de 2012

Doce amassado

Minha mãe sempre foi um fantasma. Toda noite aparecia sorrateira no meu quarto. Meus olhos despregavam preguiçosos e vislumbrava seu vulto sorridente... De algum lugar trazia doces amassados, babando eu comia e sujava os dedos. Sua mão gelada enrolava meu cabelo e voltava a dormir. Pela manhã não estava lá tinha ido trabalhar.

sábado, 26 de maio de 2012

Raízes

Os cabelos lisos
me parecem conformados...
Pela pele descem
sem questionamento
numa reta traçada.

Os cabelos enrolados
fazem seu destino...
Roçam, brincam e se espantam,
são aneizinhos vivos
ainda que num corpo morto...

sábado, 28 de abril de 2012

Domestica(dos)

Mamãe nunca teve meio termo. Lasca-me um tapa na fuça, e logo me põe no colo beijando minha testa desculpando-se com voz mais infantil que a minha.

Até seu café não tem meio termo. Côa uma tinta capaz de pintar asfalto, e um desenxabido mijo de padre. Eu misturo, se ficar forte demais ou fraco de menos, talvez tenha a manhã seguinte para tentar de novo.
O café vem com meu mexido preferido: ovo frito, com banana e farinha de mandioca; como de olhos fechados, só abro a boca.
E vamos nós pra casa da patroa.
Quando estou aqui transpiro alecrim. Móveis novos e bonitos, paredes limpas e espaço para respirar. Os cachorros são mais limpos que os nossos, mas não sabem abanar o rabo. Não gosto deles.
Vou ao banheiro e até me esqueço de que o xixi parou de cair, os azulejos me encantam. Em cada quadrado branco, uma flor, em cada flor uma cor; azul, amarela e laranja, depois repete e começa de novo, azul, amarela e laranja, azul, amarela e laranja...
Pensei em perguntar para mamãe quem tinha pisado nas flores do nosso banheiro, mas desisti, ela não gostava de perguntas, principalmente das minhas.
Mas eu gosto mesmo é da janela da sala. Subo no sofá, desatarraxo o trinco e repouso no parapeito. Olho a cidade pequenininha, as pessoas se esbarrando lá embaixo e o som dos carros e a gritaria das bocas rastejando tentando alcançar meus ouvidos, e eu levinha, levinha.
Seria legal ter uma janela dessa, em que a gente se sente grande...
Hoje o dia passou rápido. Desço de mãos dadas com mamãe pela caixa-bonita-com-espelho que em segundos nos coloca de novo no chão.
Caminhando para o ponto de ônibus, vejo zumbis com roupas velhas, cabelos espetados e olhos apagados, gente bem parecida comigo e com a minha mãe. A gente existe mal.
Mas eu estou bem, mesmo voltando para as goteiras, o mofo e para meu colchão magro estou com o livro do Pedrinho loirinho, acho que ele não vai ligar...

terça-feira, 17 de abril de 2012

Cidadela

Essa cidade não tem idade
Infância, adolescência ou velhice
Só de guarda-chuva a mesmice

Essa cidade não tem estação
Não tem primavera,
não tem outono, nem verão

Essa cidade não tem calor
Sexo frio, sem meia luz
nem cobertor

Essa cidade não tem pulsão.
Miserável dormindo na cama,
e miserável que dorme no chão

Essa cidade não tem conflito,
só quem sente está aflito

quinta-feira, 12 de abril de 2012

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Cale-se

Espere a flor crescer
para mostrá-la aos outros,
na promessa de vida ela
poderá morrer e ninguém
terá nada pra ver

domingo, 1 de abril de 2012

Alma pequenina

Perto, nunca saberia de você,
mas longe esse nunca
é mais estrada ainda...

Imagino o que pensa o que faz
enquanto eu, não penso
e nada faço

A insônia me beija
e os calafrios beliscam
minha alma pequenina

Um dia vou apertar a
saudade para que ela vá embora
e eu possa ficar. 

quarta-feira, 28 de março de 2012

Morte em vida

Eu morri
e nunca dei opinião em nada, sendo sempre bege e neutra
Eu morri
e não tive coragem de olhar nos olhos do mendigo com medo de me ver
Eu morri
e não te beijei como meus lábios queriam, porque a dúvida me pareceu mais confortável que a certeza
Eu morri
e gastei com coisas que não usei, preferi ter algo palpável para mostrar e não experiências para contar
Eu morri
e passei horas do meu dia num escritório, esquecendo a cor que o sol tinha
Eu morri
e não escrevi aquele poema, por vergonha que alguém lesse
Eu morri
e nunca tomei um porre, pensando no que iam pensar, quando, na verdade, ainda que morresse seca nunca estariam satisfeitos
Eu morri
e esqueci de abraçar minha mãe nos últimos meses, mesmo sendo ela chata e implicante como é de sua natureza
Eu morri
e não subi aquela montanha por medo de sentir medo
Eu morri
e não prolonguei a conversa com os amigos por receio de chegar atrasada ao trabalho no dia seguinte
Eu morri
e fiquei anos num relacionamento falido por medo da solidão, não percebendo que ela me acompanha desde que nasci
Eu morri
e nunca pedi desculpa, ainda que eu erre ninguém precisa saber
Eu morri
e as larvas que via nas goiabas e maçãs, agora me devorariam numa inversão de destinos
Eu estou viva
e ainda assim não farei nada disso

terça-feira, 20 de março de 2012

Amor de rua

A mão inclinada
acaricia
o peito do amado

Pousados no chão,
na lua
no colchão surrado

Pernas feridas,
encardidas
desenham o poema

Ratos, baratas, fome
amor e desejo
sem sobrenome

Alheios se fundem

se perdem
é o amor e só 

quinta-feira, 1 de março de 2012

Rabiscaram o papel

Rabiscaram o papel,
nossos descaminhos
se cruzaram, e transam
sem nossos corpos

A distância nos enlaça
amarra, e nos mastiga
com a incerteza
do que não somos nós

Nossas palavras desenham,
erguem e derrubam
formam essência, sonho
e uma realidade covarde

Somos um boato com fatos,
vítimas de nossas línguas
bocas que salivam e
ainda assim morrem de sede

domingo, 12 de fevereiro de 2012

Preguiça

Aqui dentro não saioponho o pé para fora
e brevemente distraio

Os peitos arfantes
exalam a coragem,
a não vida covardia
de ser noite e dia 

Dançam a ciranda
a me convidar
a feiura e a beleza da vida
que deleite não participar

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

A sobriedade bêbada de tia Izidra

Ergo a cabeça de leve e pouso os olhos no parapeito da janela do barraco. Lá está ela. Lá estão elas. Tia Izidra e sua garrafa.
Suas pernas de alicate, brevemente flexionadas, empurram a barriga para frente, os olhos fitos no teto miram o mofo, seus dedos enlaçam a carcaça de seu eu líquido.
A goela de súbito se abre. Recebe as enxurradas, é planta ávida por água.
Cria asas e sai chutando. Estufa os peitos moles que balançam trôpegos, a cana é toda Izidra.
Sai pela rua mesclando ferocidade e doçura. Para. Mergulha nos olhos dos outros, ninguém quer ser invadido, mas invadem a cara de minha Tia Izidra, com os dedos enrolados na palma da mão. 
Lambendo o asfalto o sal da lágrima tempera a vida. Os sulcos vermelhos compõem a coragem de ser mais um dia.